Refletindo sobre Trabalho Infantil Doméstico / MEMÓRIAS EM ZONAS DE SILÊNCIO*

Na trajetória de estudo e compartilhamento de informações sobre a  Infância e Adolescencia, eis que meu querido Amigo e eterno "Guia no  Conhecimento Amazônico", Professor Doutor Agenor Sarraf, compartilha com este blog um texto sobre o Trabalho Infanto-Juvenil  doméstico.
É um testemunho deste historiador exemplar, com a sensibilidade de  quem respira e vivencia a Amazônia em todos os momentos da vida.
Leiam e espero que também se emocionem!
Obrigada Professor!
MEMÓRIAS EM ZONAS DE SILÊNCIO
Por Agenor Sarraf Pacheco
Muitas lembranças de vida pela forma traumática como foram compostas  ficam por longos anos e, até mesmo, décadas, escondidas em zonas de  silêncio do (in)consciente humano. Seu revelar-se depende de motivações e  maneiras como essas experiências passadas são encaradas no presente. Em  outra dimensão, contar para alguém uma história difícil de ser narrada  emerge muitas vezes como um acerto de contas com o passado, redefine  identidades presentes e constrói novos planos e possibilidades de vida  para o futuro.
Convidado por Paula Arruda, professora do curso de Direito da UNAMA, a participar de uma mesa de debates sobre Trabalho Infanto-Juvenil Doméstico na Amazônia,  no Fórum Social Mundial em Belém, realizado no mês de janeiro de 2009,  coloquei-me a escuta de vozes de mulheres, cuja infância estivesse  marcada por deslocamentos e experiências de trabalho em habitares  alheios. Entre as mulheres com as quais dialoguei, surpreendeu-me a  trajetória de Teodora, 42 anos, casada, mãe de 05 filhos, Bacharel em  Sociologia, moradora de um município marajoara.
O sonho de continuar os estudos, emancipar-se e livrar-se da miséria  familiar ou das agressões do padrasto fizeram Teodora, com apenas 12  anos de idade, aluna da 3ª série do antigo 1º Grau, singrar águas  amazônicas para tentar a vida em Belém. Incentivada por seus próprios  familiares imiscuídos na falsa ilusão de que ali estudaria, trabalharia e  seria “gente”, a adolescente aceitou o convite para enfrentar o  desconhecido e aprender a conviver com pessoas, comportamentos e  universos diferentes dos seus.
Assim, Teodora partiu com o principal representante da justiça  naquela cidade marajoara – o Juiz de Direito –, um homem alto e muito  gordo. Dias antes da viagem, o meritíssimo procurou a mãe de Teodora  para oficializar o pedido e explicar como seria a vida da menina em  Belém. Ela seria bem tratada, estudaria e teria seus direitos  garantidos.
Apesar de o juiz ter conversado e acertado tudo com a genitora da  adolescente, o padrasto não ficou sabendo de nada e no dia da viagem,  para conseguir partir, Teodora saiu praticamente fugida de casa. Entre  medos e desejos, a menina seguiu na companhia do seu novo patrão. No  barco, contudo, começou a perceber quão difícil seria conquistar seus  sonhos, sem verem ameaçados seus princípios humanos. O juiz, logo que o  barco soltou seus cabos, expressou outros interesses. “Queria que eu  fosse dormir no camarote com ele. Fiquei apavorada. A minha sorte foi  que na viagem ia um dos meus tios, o qual o conhecia e era seu amigo, a  quem me apeguei e acabou por me proteger. Mas a viagem apenas prolongou o  que eu sofreria mais tarde”.
O início da vida em Belém, na casa do juiz, foi muito difícil para  Teodora. Apesar da inexperiência foi forçada a dar conta dos afazeres  domésticos. Cotidianamente xingada, a adolescente estava sempre às  voltas com reclamações sobre a péssima qualidade do trabalho. Não  possuía privacidade, era proibida de assistir televisão, realizar  qualquer tipo de leitura e não tinha direito de descansar antes que o  último membro da família fosse deitar-se. Fazia parte das regras da casa  e dos planos do proprietário a determinação para que toda empregada  dormisse no corredor da casa. Aliás, território estratégico para a sagaz  autoridade de justiça assediar a menina.
A escola de Belém, Teodora não conheceu, só conseguiu retornar aos  estudos 22 anos depois, quando voltou a sua terra natal. Salário, nunca  recebeu, o mais que ganhava “eram algumas coisinhas do supermercado”.  Mas o que tirava a paz da garota eram as atitudes do juiz, pois todas as  noites ela acordava com aquelas grandes mãos tocando em suas  intimidades.
Os dias foram se passando e a adolescente já não conseguia dormir  direito, porque estava sempre com medo das carícias do patrão. Três  meses depois criou coragem e contou para sua patroa, ela, no entanto,  disse não ser verdade, pois aquilo não passava de invenção da cabeça de  Teodora. Acuada e não vendo outra saída, a menina resolveu fugir de lá  para a casa de uma tia, de quem tinha o endereço. O destino, todavia, já  havia lhe preparado outra peça e desta vez para envolvê-la num complexo  relacionamento amoroso com seu novo patrão, um senhor de mais de 40  anos, sustentado e desejado por sua patroa, conhecido pelos filhos e que  durou quase 05 anos.
Essas memórias, guardadas em consistente zona de silêncio, Teodora as  revelou muito levemente, anos atrás, apenas para uma prima de quem  perdeu o contato. O reencontrar-se com essas difíceis lembranças, fez a  depoente avaliá-la como um tempo perdido, pois o complicado  relacionamento que envolveu assédio, forte atração e grande paixão,  regada por pitadas de lesbianismo, destruíram em boa medida sua própria  adolescência e juventude. “Depois que meu patrão passou a me assediar,  com o tempo eu fui gostando. Havia uma moça linda que também morava na  casa, a qual já tinha um filho de dois anos, eu não entendia por que,  mas ela dormia no quarto do casal, em seguida descobri que o filho era  também dele. Depois essa moça foi embora e eu passei a ser a bola da  vez. Quando me dei conta, já estava envolvida e por isso eu nunca saía  para canto nenhum, porque meu patrão tinha muito ciúme de mim. Eu era  uma empregada e amante, apoiada e cobiçada pela esposa e conhecida pelos  filhos”.
Depois de viver aquela história amorosa desenrolada em outro  município paraense, Teodora voltou com seus patrões para Belém e tentou  de todas as formas livrar-se daquela louca paixão. Tudo fazia, mas pouco  conseguia, pois mesmo tendo encontrado outro emprego, o antigo patrão a  procurava sempre e lhe era muito difícil renunciar o forte sentimento  que os unia.
Sua patroa armava as situações mais mirabolantes para que os três  pudessem sempre estar juntos. Esse triângulo amoroso só chegou ao fim,  depois que o casal rumou com a família para Santarém. Mesmo tendo  sofrido muito, Teodora que tinha uma trajetória na Igreja Quadrangular,  retornou os caminhos de sua antiga religião. Os assédios, no entanto,  não cessaram, outro patrão, um senhor de quase 70 anos, tentou  aproximações com a jovem, agora com 20 anos, mas as marcas de uma  adolescência conturbada foram lições que fizeram Teodora avaliar aquele  modo de vida como inviável.
Narrativa de outra mulher marajoara, 35 anos, mãe de 03 filhos, gari,  de nome Filomena, com trajetória distinta a de Teodora, mas também  marcada pelo trabalho doméstico quando era adolescente, expõe  ressentimentos a permitir entendimento dessa prática como importante  zona que silencia os baixos índices de escolaridade vividos por meninas  do espaço rural amazônico: “Só me arrependo porque eu não pude estudar. A  culpa não foi minha, foi dos meus pais que não se interessaram por  mim”.
A denúncia de Filomena interliga-se à concepção de educação que ainda  perdurava no seio das famílias marajoaras na década de 1930. Esta  concepção também contribuiu para acirrar a exclusão de meninas dos  bancos escolares e carimbá-las como mulheres do lar. Narrativa de D.  Maria Corrêa Oliveira, 79 anos, hoje falecida, recuperada há 10 anos,  pereniza uma memória de arrependimento e tristeza. “Nunca estudei,  porque meus pais não deixavam. Eles falavam que não era para eu escrever  cartas pra namorado. Hoje me sinto culpada por não ter aprendido ler e  nem escrever. Isso tudo é culpa de meus pais, por não terem deixado eu  estudar. Quando mandam uma carta pra mim, eu tenho que pedir pra alguém  ler. Teve pessoas que até me enrolavam, mas eu não podia fazer nada.  Meus pais tinham tanto ciúme de mim que não consentiam eu levar uma  xícara de chá a uma visita”.
Se hoje Teodora conseguiu dar a volta por cima, mesmo esforçando-se  para conviver com doloridas lembranças de infância, Filomena segue sua  trajetória em ressentimento, como muitas mulheres amazônicas porque não  conseguiu estudar. Sagas de crianças e adolescentes como as de Teodora e  Filomena, que cedo foram forçadas a atrofiar seus direitos à infância  para trabalharem como empregadas domésticas em ambientes pouco saudáveis  à vida humana, porque “negligenciadas, abusadas física, psicológica ou  sexualmente” (PAULA ARRUDA, 2008, p. 09) ou historias que contam  práticas de prostituição e trabalho infanto-juvenil, tão comuns hoje nos  rios da Amazônia, são vivências que arranham e deixam pálidos os  cenários dos povoados da região. A infância pobre na Amazônia desenha-se  em rostos dilacerados, vozes silenciadas, corpos enfraquecidos.
Quando se adentra esse universo é preciso não esquecer as estratégias  de resistências operadas por essas adolescentes para enfrentar a  dominação de seus corpos e mentes, assim como os dissonantes caminhos  por elas trilhados, conforme lembrou a professora Vanda Pantoja. Porém,  longe do alcance de políticas públicas de combate, reparação e  reabilitação da condição humana, esses anônimos personagens vão  sub-humanamente, nas ambiguidades e contradições sociais, lutando para  se manterem vivos. 
E o que as políticas sociais e educacionais têm feito  por eles? Geralmente, os baixos índices de escolarização das populações  amazônicas, por exemplo, não conseguem visualizar que um número  significativo de crianças de camadas pobres, não consegue sucesso na  escola, porque diariamente estão tragadas pelo invisível trabalho  doméstico.
 Um dos maiores entraves para o não enfrentamento da  problemática é a forma natural com que a sociedade civil parece ainda  tratar a questão. Por estes termos, a prática transformou-se na região  em clara zona de silêncio, tanto por parte dos órgãos responsáveis por  implementar políticas sociais emancipadoras, quanto por parte da escola,  que não o capta no diagnóstico do insucesso escolar.
O tema apesar de estar em debate há algum tempo, fruto da preocupação  e empenho de alguns poucos estudiosos, seja da área do Direito, do  Serviço Social, da Comunicação, da Sociologia ou de outras áreas e  organismos governamentais e não-governamentais, ainda não ganhou corpo e  ecos nos rincões amazônicos. Para exemplificar, nos municípios  marajoaras os órgãos responsáveis por implantar políticas de combate a  este tipo de trabalho chegam ao máximo a afirmar que é uma área a ser  atacada. 
Em diálogo com a uma Secretária de Promoção Social, uma  Assistente Social e uma Pedagoga, situadas no Marajó dos Campos, ficamos  sabendo da inexistência de programas ou projetos antenados à questão.  Segundo elas, o problema é visível e de conhecimento governamental, mas  não se tem ferramentas para uma atuação prática.
Respaldados em tradições que ignoraram a infância e na falta de  vontade política e sensibilidade quanto aos males causados pelo não  combate do trabalho infanto-juvenil doméstico, especialmente do gênero  feminino, representantes desses órgãos vão empurrando para debaixo do  tapete o enfrentamento necessário na denúncia desta resistente zona de  silêncio na Amazônia. 
Por fim, para não esquecermos argumento  tradicionalmente formulado e continuamente reforçado por famílias que  agenciam menores de idade a virem morar em suas casas, reflitamos  passagem escrita por Paula Arruda: “na maioria das vezes o trabalho  infanto-juvenil doméstico é camuflado por uma suposta ação humanitária  das famílias urbanas para possibilitar a menino(a)s pobres do espaço  rural terem uma vida melhor”(2008, p. 03).
 
 
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