Familia, Criança e trabalho infantil

Artigo da Professora Doutora

Danila Cal

Poderia ser um anúncio do século passado, mas foi publicado no dia 2 de maio de 2015 em um dos dois maiores jornais diários do Pará. O que o casal em questão busca é “pegar para criar” uma menina pobre que, em troca de moradia e educação, deve cuidar de uma criança. Num contexto de forte atuação de organizações sociais contra o trabalho infantil e da vigência de normas que o proíbem, o que alimenta esse tipo de anúncio?
Há importantes fatores históricos e sociais que precisam ser considerados na resposta a essa pergunta. Criar meninas pobres com objetivo de que realizem serviços domésticos é uma prática muito comum no Pará. A antropóloga Maria Angélica Motta-Maués esclarece que, após a abolição da escravidão, as próprias autoridades locais encaminhavam adolescentes para realizarem serviços domésticos nas casas de famílias abastadas. Também era comum que crias servissem de acompanhante para meninas da elite local. Muitas delas passaram a vida toda vivendo em torno da família que as acolhia, passando como legado de mãe para filha, de filha para a neta. A condição de servidão era considerada uma forma de gratidão àquela família que a abrigou.
Nesse caso, adoção e criação são situações distintas. Segundo Cláudia Fonseca, a adoção, tal como regulamentada nas leis brasileiras, significa um procedimento legal que estabelece uma nova relação de paternidade/maternidade em que há o “apagamento” da família de nascimento e o estabelecimento de uma igualdade formal entre a criança adotada e os filhos biológicos de quem a adota. Por outro lado, a “criação” refere-se a uma prática de circulação informal de crianças e implica, por vezes, um dever moral da criança em relação aqueles que a abrigaram. Assim, quando se referem às crias, os responsáveis não utilizam os termos “filho/filha”, mas sempre deixam claro que se trata de “menina que estou criando”, “pessoa que peguei para criar”.
Aspectos sociais e relacionados a questões de gênero também embasam aquele tipo de anúncio. Por ser o trabalho doméstico uma atividade tradicionalmente atribuída ao gênero feminino, quando meninas cuidam da casa e de crianças, ainda que para uma outra família raramente é considerado como trabalho de fato. Isso porque a iniciação nas atividades domésticas ocorre desde muito cedo como parte das obrigações tidas como inerentes à condição de ser menina. Lavar, passar, cuidar das crianças mais novas, limpar e cozinhar são funções raras vezes partilhadas com irmãos ou outros membros da família do sexo masculino. A inserção no trabalho doméstico ocorre, então, como se fosse imposição de gênero e um tipo de serviço mais próximo da realidade das meninas envolvidas.
Assim, as habilidades desenvolvidas na execução desse tipo de serviço são apreendidas como um dever das meninas e, desse modo, não são reconhecidas como dignas de valor. Prova disso são as expressões eufêmicas utilizadas para nomear as atividades que as meninas realizam: “reparar menino”, “fazer um café”, “não é um trabalho, ela está só brincando com meu filho”. A falta de reconhecimento dessas ações como trabalho é o que alimenta justificativas para o não pagamento de salário ou ainda para defender a ideia de que não trazem prejuízos à educação de crianças e adolescentes que as executam.
É esse contexto histórico e social que sustenta o anúncio de “vaga” de “adoção” de uma menina pobre para realizar serviços domésticos. Na verdade, como vimos, não seria adoção de fato e sim “criação”. Também não seria um trabalho, mas uma espécie de ajuda mútua. A menina poderia conviver com aquela família e estudar desde que cuidasse de uma bebê. A relação da menina doméstica com a família empregadora é, portanto, marcada pela tensão entre ser da família e ser a empregada da casa ou a babá. A condição se torna clara em situações típicas, como quando, por exemplo, “ser da família” justifica o não pagamento de salário ou o pagamento de uma quantia mínima enquanto que o “não ser da família” fica evidente nos momentos de lazer nos quais, normalmente, a menina doméstica fica responsável pela arrumação, cuidar das crianças ou carregar as bagagens enquanto que os outros “membros” da família têm como única responsabilidade aproveitá-los.
Se o trabalho infantil doméstico é uma prática comum no Pará, por que aquele anúncio gerou repercussão local e nacional?
Além de ser discutido em redes sociais online e nos meios de comunicação do estado, o caso ganhou destaque nacional com reportagens da Folha de São Paulo e do Bom Dia Brasil. Essa repercussão ocorreu porque existe no país um terreno em grande medida consolidado de defesa de direitos da criança e adolescente, fruto da atuação de organizações sociais e de conquistas advindas com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O trabalho infantil, de modo geral, vem sendo enfrentado publicamente desde a década de 1980 e o trabalho infantil doméstico desde o final dos anos 1990. Nesse cenário, um anúncio de jornal daquele tipo vai de encontro ao que está em evidência e, por isso, chama atenção. Contudo, o fato de o trabalho infantil ser em larga medida condenado publicamente, não significa que ele não esteja ocorrendo.
No Pará, há mais de 15 anos organizações sociais e governamentais lutam pelo enfrentamento do trabalho infantil doméstico e já obtiveram conquistas, mas muitas meninas ainda vivem nessa situação. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), divulgada pelo IBGE em 2012, há no Pará 19.309 crianças e adolescentes de 10 a 17 anos estão trabalhando como domésticas. Esse número deve ser ainda maior pela dificuldade de caracterizar boa parte do serviço doméstico realizado crianças e adolescentes como “trabalho”.
O que ficou de fora da crítica ao anúncio?
Se por um lado, o anúncio provocou certo debate sobre a prática do trabalho infantil doméstico, por outro, a repercussão foi muito personalizada em torno dos envolvidos e de possíveis punições e pouco permitiu o desvelamento de fatores centrais que engendram esse tipo de trabalho infantil. É fundamental destacar que não se trata simplesmente de um problema cultural, isso por vezes desvia o debate, mas é um problema de falta de políticas adequadas voltadas para crianças e adolescentes e para as famílias. O trabalho infantil doméstico é uma realidade financiada pela ausência de creches/educação infantil publicas suficientes. Nas pesquisas que realizei, as patroas pobres me diziam: “não temos com quem deixar nossos filhos enquanto trabalhamos como empregadas domésticas nas casas dos outros”. É financiada também pela falta de discussão pública sobre as responsabilidades com o cuidado, atribuída tradicionalmente às mulheres e consequentemente às meninas. Enfrentar esse trabalho infantil deveria pressupor ainda um sério questionamento às práticas opressivas de gênero que ocorrem nas próprias famílias das adolescentes e cujas nuances não foram problematizadas na discussão sobre a inserção de meninas nos serviços domésticos no Brasil e, especificamente, no Pará.
Referências citadas
FONSECA, Claudia. “Mães ‘abandonantes’: fragmentos de uma história silenciada”. Revista Estudos Feministas,vol.20, nº 1, 2012, pp. 13-32.
MOTTA-MAUES, Maria A. “Uma vez ‘cria’, sempre ‘cria’ (?): adoção, gênero e geração na Amazônia”, em. LEITÃO, Wilma Marques e Raymundo Heraldo MAUÉS (orgs.). Nortes antropológicos: trajetos e trajetórias. Belém: Edufpa, 2008.
(12 de maio de 2015.)

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Masturbação na Infância: como lidar com este desafio?

Assalto em escola municipal de Belém fragiliza ensino de crianças

Educação em tempo integral